O DIA EM QUE HELENO RESSUSCITOU
“Rodrigo Bodstein começa a guardar a câmera com que acabara de filmar depoimentos de Jairzinho, Amarildo e Zagallo para um documentário de Geneton Moraes Neto. Quando nos preparamos para deixar a churrascaria onde se comemora os 109 anos do Botafogo Football Club, um forte cheiro de gomalina e perfume invade o ambiente. Um vulto atravessa a parede e se materializa: é Heleno de Freitas, em carne e osso, num impecável smoking inglês. Na lapela esquerda, um minúsculo broche: um escudo do Botafogo, menor do que a unha de um dedo mindinho. Elegante, cumprimenta a todos, com um forte aperto de mãos. E é convidado a se sentar.
“Qual foi a partida mais importante como jogador de futebol?” Heleno franze a testa. Para quem o conhece bem, é sinal de indignação e raiva. “Você não leu a matéria de Manchete Esportiva que fala da minha internação em Barbacena?”, pergunta ao repórter. A revista é de 1956. Geneton fica constrangido. Ele não tinha lido a matéria, que tanta irritara Heleno. Além disso, não quer que o ex-jogador perceba que não está entre nós. De repente ele sorri. O repórter estranha. “Por que?” “Estava me lembrando de minhas peladas como centroavante do Olimpic, o time do sanatório. Foi a única vez em que me sentia igual aos outros. Os doidinhos me davam cada esporro…”, revela ele, que não é sorrir, mas solta uma gargalhada.
Agora está relaxado. E humilde. Pede até desculpas pela divagação. O repórter retoma a conversa. “Então… falávamos sobre a sua partida mais importante como jogador de futebol”. Heleno passa a mão na cabeça. Os cabelos ficam imóveis tamanha a quantidade de gomalina. Há um silêncio de exatos trinta segundos. Os olhos brilham. “Não houve uma partida mais importante porque nunca fui jogador de futebol”. “Não?”, se espanta Geneton, um jornalista interessado em futebol, mas não afeito a escalações, exceto quando essas escalações se referem aos seus times de botão. “Não fui jogador de futebol. Fui jogador do Botafogo!”, bate no peito, cheio de orgulho.
Heleno está nervoso de novo. “Sabe o que mais me irrita?”. Geneton faz que não com a cabeça, com um movimento leve. “Quando leio nos jornais que torço pelo fluminense. Se, já doente, falei ao repórter de Manchete Esportiva que sonhava em pegar meu Chevrolet pra ajudar o Botafogo, como poderia torcer para outro clube?”. E continua. “Quando fomos campeões em 1948, depois de treze anos de jejum, isso foi pra mim um misto de alegria e tristeza. Alegria como torcedor. Mas eu daria mesmo qualquer dinheiro para ter sido campeão pelo clube que amo”, lamenta.
Já vai chegando a madrugada. Heleno olha para a rua. Vê refletido o casarão. Fica pensativo. E sussurra. “Cadê o estádio? cadê o estádio?” Chora ao saber que fora demolida em meados dos anos 70. Recompõe-se. Com o dedo indicador, faz um risco no braço da poltrona, como se traçasse um projeto de arquitetura. “Estou parecendo o Otávio de Moraes. Ele virou arquiteto depois que parou de jogar, né?”. pergunta. Digo que sim com a cabeça. Otávio planejou e executou com Heleno um dos ataques mais mortais do nosso futebol. Aponta para um canto da planta imaginária. “Onde estamos, bem aqui, deve ser o local do quarto de vinte metros quadrados onde Neném Prancha dormia, debaixo das arquibancadas”. E se emociona de novo ao lembrar do seu descobridor.
“E a Copa de 50? Estou fazendo um documentário sobre aqueles jogadores, tão injustiçados. Até a morte pagaram por aquela derrota”, comenta o repórter. “Cascata. Eles perderam sim! Per-de-ram! Eu estava na Colômbia. Fiquei muito puto. Eu lá e teríamos conquistado a Jules Rimet antes. Aqueles frouxos…”
Tímido, dirijo a palavra a ele pela primeira vez. A imagem de Heleno está um pouco desfocada. “Você é meu ídolo. Mais do que o Garrincha, o Nilton Santos. Minha foto do Facebook é a sua foto”, conto. “Facebook? O que é isso?” Explico, mas é complicado pra ele, há tanto tempo longe. “Nem sei o que é computador. Usam isso pra falar uns com os outros? Sou homem do cara-a-cara. De qualquer forma obrigado.” Despede-se com a cara tranquila. Ganha a rua. Vai a pé até o túnel do Pasmado. E seu corpo some na fria escuridão.
Paulo Marcelo Sampaio”
Abraço a todos e até a próxima se Deus quiser!
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